É possível transfusão de sangue em Testemunha de Jeová , decide o STJ
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Justiça brasileira decide:
risco iminente de morte obriga médico a fazer transfusão de sangue em
testemunha de Jeová, mesmo contra a vontade da família
Embora correta, tem
gravíssimas consequências potenciais a decisão desta semana da 6.ª Turma do STJ
(Superior Tribunal de Justiça), que isentou de responsabilidade pela morte da
menina Juliana Bonfim da Silva, de apenas 13 anos, os pais dela, que alegaram
motivos religiosos para se opor à realização de uma transfusão sanguínea
salvadora. Para o STJ, a responsabilidade pelo trágico desfecho foi
exclusivamente dos médicos.
Testemunhas de Jeová, os
pais de Juliana, o militar aposentado Hélio Vitória dos Santos e a dona de casa
Ildelir Bonfim de Souza, moradores em São Vicente, litoral de São Paulo,
internaram-na no Hospital São José em julho de 1993, durante uma crise causada
pela anemia falciforme, doença genética, incurável e com altos índices de
mortalidade, que afeta afrodescendentes. A menina tinha os vasos sanguíneos
obstruídos e só poderia ser salva mediante a realização de uma transfusão de
emergência.
Continua...
Os médicos que atenderam
Juliana explicaram a gravidade da situação e a necessidade da transfusão
sanguínea, mas os pais foram irredutíveis. A mãe chegou a dizer que preferia
ter a filha morta a vê-la receber a transfusão. A transfusão não foi feita.
Fez-se a sua vontade.
As Testemunhas de Jeová
baseiam-se na “Bíblia” para recusar o uso e consumo de sangue (humano ou
animal). Entendem que esta proibição aparece em muitas passagens bíblicas, das
quais as seguintes são apenas exemplos:
Gênesis
9:3-5
Todo animal movente que está
vivo pode servir-vos de alimento. Como no caso da vegetação verde, deveras vos
dou tudo. Somente a carne com a sua alma — seu sangue — não deveis comer.
Levítico
7:26, 27
E não deveis comer nenhum
sangue em qualquer dos lugares em que morardes, quer seja de ave quer de
animal. Toda alma que comer qualquer sangue, esta alma terá de ser decepada do
seu povo.
Levítico
17:10, 11
Quanto a qualquer homem da
casa de Israel ou algum residente forasteiro que reside no vosso meio, que
comer qualquer espécie de sangue, eu certamente porei minha face contra a alma
que comer o sangue, e deveras o deceparei dentre seu povo. Pois a alma da carne
está no sangue, e eu mesmo o pus para vós sobre o altar para fazer expiação
pelas vossas almas, porque é o sangue que faz expiação pela alma [nele].
Atos
dos Apóstolos 15:19, 20
Por isso, a minha decisão é
não afligir a esses das nações, que se voltam para Deus, mas escrever-lhes que
se abstenham das coisas poluídas por ídolos, e da fornicação, e do
estrangulado, e do sangue.
Para o ministro Sebastião
Reis Júnior, que votou na terça-feira (12/08), a oposição dos pais à transfusão
não deveria ser levada em consideração pelos médicos, que deveriam ter feito o
procedimento -mesmo que contra a vontade da família. Assim, a conduta dos pais
não constituiu assassinato, já que não causou a morte da menina.
A decisão no STJ foi
comemorada pelo advogado Alberto Zacharias Toron, que defendeu os pais da
menina morta: “É um julgamento histórico porque reafirma a liberdade religiosa
e a obrigação que os médicos têm com a vida. Os ministros entenderam que a vida
é um bem maior, independente da questão religiosa”.
Então, quem é culpado pela
morte da menina que poderia ter sido salva mediante a realização da transfusão?
Resposta: os médicos, que ao respeitar a vontade dos pais, desrespeitaram o
Código de Ética Médica (2009), claríssimo sobre o assunto:
“É
vedado ao médico:
“Art.
31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir
livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em
caso de iminente risco de morte.
“Art.
32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento,
cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente”.
Isso posto, está claro que a
decisão do STJ tem menos a ver com a afirmação do direito à liberdade de crença
e muito mais a ver com a primazia do direito à vida sobre todos os demais.
Assim, a mãe poderia até preferir ter a filha morta a vê-la passando por um
processo de transfusão. Mas a Justiça brasileira, não! E o médico também não!
Agora, vamos aos problemas e
aos perigos de uma tão incontrastável decisão, e que já aparecem nos fóruns de
debates da internet, reunindo ex e atuais membros da religião das Testemunhas
de Jeová.
- Como em todas as
religiões, há os sinceros e os “espertinhos”. Os “espertinhos” ficarão
tranquilos por saberem que não serão excluídos do grupo religioso se passarem
por uma transfusão. Bastará dizer que manifestaram a não-aceitação do
procedimento, mas que os médicos fizeram-no contra a sua vontade. “A decisão
salvaguarda a hipocrisia”, comentou um debatedor. “Os pais proíbem a transfusão
para se eximirem da culpa; os médicos fazem o procedimento para se livrarem de
processos e, assim, se condenam diante de Deus no lugar dos pais.”
- Acontece que, para uso
interno no grupo das Testemunhas de Jeová, a proibição da transfusão de sangue
prosseguirá. Imagine uma mãe que, tendo preferido ver a filha morta caso a
transfusão fosse feita, depois de alguns dias, a menina curada, possa levá-la
para casa. Que tipo de tratamento essa mãe dará à filha “decepada de seu povo”?
Como lidar com as consequências psicológicas adversas, que certamente
acometerão as famílias testemunhas de Jeovás que, levando a sério a proibição,
tiverem um de seus membros proscritos pela transfusão contra a vontade?
- Para piorar, é razoável
prever que muitas testemunhas de Jeová “sinceras” prefiram ficar distantes dos
hospitais e médicos, por saberem que a transfusão será feita de qualquer jeito.
Com isso, doenças que até poderiam ter tratamentos alternativos (sem o concurso
da transfusão) ficarão sem quaisquer cuidados, prejudicando os enfermos e até
antecipando-lhes a morte. “Isso sem contar os pais que, desesperados pela
realização de um procedimento abominado por Deus, podem simplesmente vir a
remover o filho do hospital às escondidas para livrá-lo da transfusão”, afirmou
outro debatedor.
Todas essas questões apontam
para dilemas que não são meramente individuais, mas dizem respeito à saúde
pública. De acordo dados do Censo de 2010 do IBGE, existiam 1.393.208
Testemunhas de Jeová no Brasil, uma religião com crescimento consistente e
positivo. Em 2013, foram feitos 26.329 batizados no país. No evento de 2013 da
Comemoração da Morte de Cristo, a mais importante celebração religiosa do
grupo, estiveram presentes 1.681.986 pessoas.
Agora, imagine boa parte
dessa gente alijada de procedimentos médicos que salvam vidas e poupam
sofrimentos. Que Deus é esse?
Sobre
a autora do texto
Laura
Capriglione, 54, é jornalista. Nasceu em São Paulo e
cursou Física e Ciências Sociais na USP. Trabalhou como repórter especial do
jornal “Folha de S. Paulo” entre 2004 e 2013. Dirigiu o Notícias Populares
(SP), foi diretora de novos projetos na Editora Abril e trabalhou na revista
“Veja”. Conquistou o Prêmio Esso de Reportagem 1994, com a matéria “Mulher, a
grande mudança no Brasil”, em parceria com Dorrit Harazim e Laura Greenhalgh.
Foi editora-executiva da revista até 2000.
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