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Primeiro, o casal teve sete filhas! O pai, que se chamava Antônio, coçava a cabeça, revoltado e triste:

 — Meu Deus do Céu!

Era um santo e obstinado homem. Seu sonho era bem simples, bastava um casal de filhos, um de cada sexo. Veio a primeira menina, mais outra, uma terceira, uma quarta e outro qualquer teria desistido, considerado que a vida encareceu muito. Mas seu Antônio incluía entre seus defeitos o de ser teimoso. Na quinta filha, pessoas sensatas aconselharam: "Entrega os pontos, que é mais negócio!". Seu Antônio respirou fundo:

— Não, nunca! Nunca! Eu não sossego enquanto não tiver um filho homem!

Por sorte, casara-se com uma mulher; d. Roberta, que era, acima de tudo, mãe. Sua gravidez transcorria docemente, sem enjoos, desejos, tranquila, quase feliz. Quanto ao parto propriamente, era outro fenômeno estranhíssimo. Punha os filhos no mundo sem um gemido, sem uma careta. O marido sofria mais. Digo "sofria mais" porque o acometia, nessas ocasiões, uma dor de dente tremenda, de origem emocional. O caso dava o que pensar, pois Antônio tinha na boca uma chapa. Quando nasceu a sétima filha, o marido arrancou de si um suspiro em profundidade; e anunciou:

— Minha mulher, agora nós vamos fazer a última tentativa!

NOVO PARTO
Continua...



No dia que d. Roberta ia ter o oitavo filho, os nervos de seu Antônio estavam em pandarecos. A mulher foi levada a maternidade. O médico, gorducho, espiou-a com uma experiência de mil partos e concluiu: "Não é pra já!", disse ao pai que aguardava aflito numa sala ao lado. Ao que, mais do que depressa, responde seu Antônio:

— Não pode ser, doutor, meus dentes estão doendo!

E, de fato, o grande termômetro, em qualquer parto da esposa, era a sua dentadura. O médico duvidou, mas, daí a cinco minutos, foi chamada outra vez. Houve um incidente de última hora. É que o digno profissional já não sabia onde estava a luva. Procura daqui, dali, e não acha. Com uma tremenda dor de dentes postiços, seu Antônio teve de passar-lhe um sabão:

— Pra que luvas, carambolas? Mania de luvas!

RAMONZINHO

Assim nasceu o Ramonzinho, no parto mais indolor que se possa imaginar. Uma prima solteirona veio perguntar: "Levou algum ponto?". Ralharam:

— Sossega o faixo!

O fato é que seu Antônio atingira, em cheio, o seu ideal de pai. Nascido o filho e passada a dor da chapa dupla, o homem gemeu: "Tenho um filho homem. Agora posso morrer!". E, de fato, quarenta e oito horas depois, estava almoçando, quando desaba com a cabeça no prato. Um derrame fulminante antes da sobremesa. Para d. Roberta foi um desgosto pavoroso. Chorou, bateu com a cabeça nas paredes, teve que ser subjugada. E, na realidade, só sossegava na hora de dar o peito. Então, assoava-se e dizia à pessoa mais próximo:

— Traz o Ramonzinho que é hora de mamar!

FLOR DE RAPAZ

Ramonzinho criou-se agarrado às saias da mãe, das irmãs, das tias, das vizinhas. Desde criança, só gostava de companhias femininas. Qualquer homem infundia-lhe terror. De resto, a mãe e as irmãs o segregavam dos outros meninos. Recomendavam: "Brinca só com meninas, ouviu? Menino diz nomes feios!". O fato é que, num lar que era uma bastilha de mulheres, ele atingiu os dezesseis anos sem ter jamais proferido um nome feio, ou tentado um cigarro. Não se podia desejar maior doçura de modos, idéias, sentimentos. Era adorado em casa, inclusive pelas criadas. As irmãs não se casavam, porque deveres matrimoniais viriam afastá-las do rapaz.

E tudo continuaria assim, no melhor dos mundos se, de repente, não acontecesse um imprevisto. Um tio do rapaz vem visitar a família e pergunta:

— Você tem namorada?

— Não.

— Nem teve?

— Nem tive.

Foi o bastante. O velho quase pôs a casa abaixo. Assombrou aquelas mulheres transidas com os palavrões horriveis: "Vocês estão querendo ver a caveira do rapaz?". Virou-se para d. Roberta:

— Isso é um crime, ouviu?, é um crime o que vocês estão fazendo com esse rapaz! Vem cá, Ramon, vem cá! Implacável, submeteu o sobrinho a uma exibição. Apontava:


—  Isso é jeito de homem, é? Esse rapaz tem que casar, rápido!

PROBLEMA MATRIMONIAL
  

Quando o tio despediu-se, o pânico estava espalhado na família. Mãe e filhas se entreolharam: "É mesmo, é mesmo! Nós temos sido muito egoístas! Nós não pensamos no Ramonzinho!".

Quanto ao rapaz, tremia num canto. Ressentido ainda com a franqueza bruta do tio, bufou:


— Eu vou fazer o que ele quer, então!

A verdade é que já o apavorava a perspectiva de qualquer mudança numa vida tão doce. Mas a mãe chorou, replicou: "Não, meu filho. Seu tio tem razão. Você precisa casar, sim". Atônito, Ramonzinho olha em torno. Mas não encontrou apoio. Então, amedrontado, ele pergunta:

— Casar pra quê? Por quê? E vocês? — Interpela as irmãs: — Por que vocês não se casaram?

A resposta foi vaga, insatisfatória:

— Mulher é outra coisa. É diferente.

A NAMORADA

Houve, então, uma conspiração quase internacional de mulheres. Mãe, irmãs, tias, vizinhas, foram logo procurar uma namorada para o Ramonzinho. Entre várias pequenas possíveis, acabaram descobrindo uma. E o patético é que o principal interessado não foi ouvido, nem cheirado. Um belo dia, é apresentado a Célia. Uma menina de 18 anos, mas que tinha um corpo esplendoroso de mulher feita. Um olhar rutilante, lábios grossos, ela produziu, inicialmente, uma sensação de terror no rapaz. Tinha uns modos desenvoltos que o apavorava.


E começou o namoro mais estranho de que se têm notícias. Numa sala ampla do Centro, os dois namoravam. Mas jamais os dois ficaram sozinhos. De dez a quinze mulheres estavam na sala, acompanhando o romance. Ramonzinho, estatelado numa inibição mortal e materialmente incapaz de segurar na mão de Célia. Esta, por sua vez, era outra constrangida.

Quem deu remédio à situação, ainda uma vez, foi o inconveniente e destemperado tio. Viu a legião feminina controlando o namoro. Explodiu:

"Vocês acham que alguém pode namorar com a arquibancada do Sampaio e do Moto Club? Vamos deixar os dois sozinhos, pelo amr de Deuss!". Ocorreu, então, o seguinte: sozinha com o namorado, Célia atirou-lhe um beijo no pescoço. O desgraçado encolheu-se, eletrizado:

— Não faz assim que eu sinto cócegas!

O VESTIDO DE NOIVA

Começaram os preparativos para o casamento. Um dia, Célia apareceu, frenética, abrindo uma revista. Descobrira uma coisa espetacular e quase esfregou aquilo na cara do Ramonzinho: "Não é bacana esse modelo?". A reação do rapaz foi surpreendente.

Se Célia gostara do figurino, ele muito mais. Tomou-se de fanatismo pela imagem do vestido de noiva:

— Que beleza, meu Deus! Que vestido lindo!

Houve, aliás, unanimidade feroz. Todos aprovaram o modelo que fascinava Célia. Então, a mãe e as irmãs do rapaz resolveram dar aquele vestido à pequena. E mais, resolveram encomendá-lo a uma conhecida costureira.

O vestido chegou e todos olhavam com admiração. Ramonzinho estava fascinado com cada detalhe da peça de roupa.  "Mas como é bonito! Como é lindo!". E seu enlevo era tanto que uma vizinha, muito sem cerimônia, brincou:

— Parece até que é Ramonzinho que vai vestir esse negócio!


O LADRÃO

Uns quatro dias antes do casamento, o vestido estava ainda na casa de Ramonzinho. Meditativo, ele suspirava: "A coisa mais bonita do mundo é uma noiva!". Muito bem. Passa-se mais um dia. E, súbito, há naquela casa o alarme: "Desapareceu o vestido da noiva!". Foi um tumulto de mulheres. Puseram a casa de pernas para o ar, e nada. Era óbvia a conclusão: alguém roubou!  E como faltavam poucos dias para o casamento sugeriram à desesperada Célia: "O golpe é casar sem vestido de noiva!". Para quê? Ela se insultou:

— Casar sem vestido de noiva, uma pinóia! Nunca na vida!

Chamaram até a polícia. O mistério era a verdade, alucinante: Quem poderia ter interesse num vestido de noiva? Todas as investigações resultaram inúteis. E só descobriram o ladrão quando dois dias depois, pela manhã, d. Roberta acorda e dá com aquele vulto branco, suspenso no corredor. Vestido de noiva, com véu e grinalda — enforcara-se Ramonziho, deixando o seguinte e doloroso bilhete:

"Quero ser enterrado assim".

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Contos

Nova Sessão do blog do Carlinhos

Baseado nos contos de Nelson Rodrigues

“A Vida Como Ela é”

AVISO: Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência. 
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5 Comentários

  1. Carlinhos,muda o repertório,nós brasileiros não temos o hábito de leitura.

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  2. muito interessante essa nova sessão, incentiva a leitura.

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  3. O Observador de Pedreiras26 de setembro de 2016 às 12:09

    E muita comprida essa estória não vai colar não nois não temos pra ela leitura td ok

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  4. Até às 12h24 desta segunda-feira, 343 pessoas visualizaram esse eletrizante contos de Nelson Rodrigues; são uns afortunados que ainda consegue tempos para uma leitura agradável. Hoje eu postarei um poema de Manuel Bandeira.

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  5. Muito bom essa nova sessão para leitura

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