Meio bêbada e de braços dados com um espanhol
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Amanda Cipullo
Crônicas e contos
Das noites em Madrid, entre o espanhol e o
colombiano
"Por aqui sempre tem um monte de gente chegando
e indo embora, essa é a semelhança entre São Paulo e outras cidades
grandes". Li isso em uma reportagem ou guia de viagens, não me lembro
direito. Naquela época, eu tinha passagens marcadas para longe. Iria viajar em
mês e sabia apenas que a semelhança entre São Paulo e as cidades pelas quais eu
passaria era o fato de que em todas elas sempre tinha muita gente chegando e
partindo. Eu, inclusive.
O roteiro de paragens, que antes fora traçado a
quatro mãos - resquício de uma ressaca amorosa -, finalmente iria sair do
papel. Obviamente era muito menos megalomaníaco do que o que havíamos planejado
inicialmente. Três meses de viagem, transformaram-se em vinte e cinco dias -
era só quanto meu dinheiro dava. Além disso, agora já não éramos nós. Então
mudei rota, apertei as contas, comprei as passagens e embarquei sozinha, no
último dia do ano, como se daquele modo pudesse deixar para trás todos os
últimos 365 dias.
Eu acreditava que bastaria isso para que minha cabeça
voltasse para o lugar certo - apesar de nunca ter entendido direito o que
significava esse negócio certo e errado. Não imaginei, no entanto, que fosse
acontecer o contrário. E, na verdade, era justamente o que eu precisava.
Quando entreguei o meu passaporte para o
recepcionista - uma figura com cara de personagem de filme do Almodóvar -, por
alguma razão que não sei bem qual, me lembrei de todas essas coisas que eu lhe
conto agora. Foram elas que me levaram até um hotel em reforma, um pouco
afastado do centro. Era a minha primeira noite em Madrid e, apesar de não ter
planejado encerrá-la ali, era lá que eu estava: meio bêbada e de braços dados
com um espanhol, que falava português mas vivia na Suíça. Ou algo assim. Era lá
que eu estava e não fazia ideia do que esperar daquele encontro - e nem de
todos os que viriam depois.
Continua...
Continua...
Tínhamos nos conhecido algumas horas antes em uma
festa do hotel em que eu realmente tinha me hospedado - o lugar em que estavam
as minhas malas, e em que eu supostamente deveria passar a primeira noite. No
entanto, quando a bebida acabou, resolvemos que seria uma boa ideia seguir de
bar em bar, ao lado de um grupo de pessoas que também acabáramos de conhecer:
um artista de rua panamenho, um mexicano que queria conhecer o mundo, uma musicista
da Estônia...
Aos poucos, todos eles foram ficando pelo caminho.
Algumas doses, copos acidentalmente quebrados e drinks roubados depois,
acabamos sozinhos. Foi ali que pude perceber algo que as risadas de antes não
tinham me deixado notar: ele tinha olhos que não olhavam. Escapavam e tinha tanta coisa dentro deles que eu não
poderia tê-las compreendido se ele não sussurrasse em meus ouvidos que nós
tínhamos pouco tempo, que logo seria engolido pelas vozes que ouvia.
Sempre achei que a loucura estivesse em todos os
lugares, e eu já a tinha visto em outros olhos, além dos dele. Afinal, quem é
normal?
Sempre achei que, grande parte do tempo, caminhamos
pela mesma corda bamba, evitando olhar para o abismo que nos cerca. Acontece
que, algumas vezes, somos instintivamente tragados para dentro dele. Pode
acontecer com qualquer um, a qualquer momento. Afinal, quem é normal?
Por isso resolvi ficar, porque mesmo sabendo que a
loucura a qual ele se referia, era de verdade, eu já havia sido puxada para
dentro do abismo. Eu não ouvi as mesmas vozes, mas entendia - mesmo que não
completamente - como era estar com a cabeça fora do lugar que dizem ser o
certo. E me admirava a coragem dele de falar sobre aquilo, eu mesma não a tinha
- e ainda não tenho.
Tudo isso eu disse sem precisar dizer. Então, seus
olhos pararam de escapar. Fixaram-se pela primeira vez. E eu mudei o assunto,
porque não fazia ideia de como encará-los.
– Diz alguma coisa em francês? - pedi.
– Que coisa?
– Qualquer coisa.
Ele falou algo, e eu sorri sem entender - sem
tradução não perde o encanto.
Ainda estávamos parados na rua, tentando lidar com o
álcool, o tesão e todas as confissões intimas que compartilhávamos, quando os
primeiros pingos começaram a nos molhar. A previsão do tempo já tinha anunciado
que durante a madrugada a tempestade seria forte, mesmo assim, para ela nós
também estávamos despreparados.
Foi isso que nos levou até a recepção de um hotel em
reforma, afastado do centro, e fez com que eu escolhesse o quarto mais quente
para terminar a minha primeira noite em Madrid - essas são coisas inevitáveis e
irresistíveis, que sempre me fizeram perder a hora de voltar para casa.
Na manhã seguinte, a chuva ainda caia forte, mas
agora já não estávamos tão despreparados para encará-la. Recolocamos as roupas,
e ele voltou a ter olhos que não olhavam. Foi assim. Foi só isso.
Depois daquilo, nunca mais nos vimos. E seu nome só
foi citado mais uma única vez, horas depois, quando um colombiano bêbado me
perguntou se eu tinha transado com o espanhol. E eu respondi que sim, mas não
pude dizer tudo o que aconteceu. Na verdade, não saberia dizer tudo o que
aconteceu. Sabia apenas que, a qualquer momento, ele poderia entrar em um mundo
que eu não tenho acesso, e eu não conseguiria conviver com essa loucura, não
além daquela noite.
E é provável que já soubéssemos de tudo isso logo no
primeiro beijo, quando um tirava a roupa do outro, ou enquanto eu deixava que
ele me conduzisse por diversas posições. Enquanto sentia a vertigem extremamente
excitante de ser guiada por um louco, sem fazer a menor ideia de para onde
seria levada. Excitante e perigosa, porque fazia com que eu visse a minha
própria loucura.
Aquele era só o começo da viagem, ainda havia muito
para ser percorrido; inúmeros encontros para os quais eu não estava preparada.
E, depois, teria que lidar com as lembranças de todos eles. Esse é o preço que
se paga pela irresponsabilidade de deixar-se perder entre as paisagens dessas
cidades cheias de pessoas que estão sempre indo e vindo.
Faz tempo que tudo isso aconteceu, mas ainda me pego
pensando se toda essa história da loucura era verdade, ou nos riscos que eu
podia ter corrido, caso ele fosse tomado por algo que eu não pudesse entender.
E, algumas vezes, senti que fui imprudente. Outras, ficava excitada. Hoje não
sei mais.
Fonte: Papo de Homem
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