CASAL DE TRÊS
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O sogro era um santo e boêmio
cidadão. Assim que o viu correu de braços abertos:
— Como vai essa figura? Bem?
Halan abraçou e
deixou-se abraçar. E falou num tom que misturava tristeza e raiva:
— Meu sogo, eu vou mal,
muito mal!
Espanto do sogro:
— Por que, rapaz? — E
insistia: — Vai mal por quê?
Caminhando pela
calçada, lado a lado com o velho bom e barrigudo, Halan foi enumerando as suas
provações, só comparáveis às de Jó:
— É o gênio de sua
filha. Ela me humilha o dia inteiro. Qualquer dia apanho na cara!
O sogro, que era médico,
ouviu numa expressão grave:
— Compreendo,
compreendo. — Suspira, admitindo: — Puxou à mãe. Gênio
igualzinho. A mãe
também é assim!
Súbito, Halan fica
paralisado. Põe a mão no ombro do outro; e pergunta:
— Quero que o senhor me
responda o seguinte: isso está certo? Ela tá correta em viver me tratando mal?
O velho engasga:
— Bem. Correta,
propriamente, não sei. — Medita e pergunta: — Você quer uma opinião sincera? Conselho
dos bons? Quer?
— Quero.
Continua...
E o sogro:
— Então, vamos tomar
qualquer coisa ali adiante. Vou te dizer umas coisas que todo homem casado
devia saber.
TEORIA
Entram num pequeno bar,
ocupam uma mesa discreta. Enquanto o garçon vai e vem, com uma cerveja e dois
copos, o sogro comenta:
— Você sabe que eu sou
casado, claro. Muito bem. E, além da minha experiência, vejo a dos outros.
Descobri que toda mulher honesta é assim mesmo.
Espanto de Halan:
— Assim como?
O gordo continua:
— Como minha filha. Sem
tirar, nem pôr. Você, meu caro, desconfie da esposa amável, da esposa boazinha,
gentil. A virtude é triste, azeda e histérica.
Halan recua na cadeira:
— Tem dó! Essa não! — E
repetia, de olhos esbugalhados, lambendo a espuma da cerveja: — Essa, não!
Mas o sogro insistiu.
Pergunta:
— Sabe qual foi a
esposa mais amável que eu já vi na minha vida? Sabe? Foi uma que traía o marido
com a metade de São Luís, inclusive comigo! — Espalmou a mão no próprio peito,
numa feroz satisfação retrospectiva: — Também comigo! E tratava o marido assim,
como um rei!
Uma hora depois, saíam
os dois do pequeno bar. O sogro, com sua barriga estufada e bêbado, gritva:
— Você deve se dar por
muito satisfeito! Deve lamber os dedos! Dar graças a Deus!
O genro, com as pernas
bambas, o olho injetado, resmunga:
— Vou tratar disso!
O DESGRAÇADO
Não mentira ao sogro.
Sua vida conjugal era, de fato, de uma melancolia tremenda. Descontado o período da lua-de-mel, que ele
estimava em oito dias, nunca mais fora bem tratado. Sofria as mais graves
desconsiderações, inclusive na frente de visitas. E, certa vez, durante um
jantar com outras pessoas, ela o fulmina, com aseguinte observação, em voz
altíssima:
— Vê se para de
mastigar com a boca aberta assim, seu nojento!
Houve um
constrangimento universal. O pobre do marido, assim desfeiteado, só faltou
atirar-se pela janela mais próxima. Após três anos de experiência matrimonial,
ele já não esperava mais nada da mulher, senão outros desacatos. E só não
compreendia que Vicencia, bondosa com todo mundo, fizesse uma exceção para ele,
que era, justamente, o marido. Depois de ter deixado o sogro, voltou para casa
desesperado.
Chega, abre a porta,
sobe a escada e quando entra no quarto recebe a intimação:
— Não acende a luz!
Gritou-lhe, histérica.
Obedeceu. Tirou a roupa
no escuro e, depois, procurou um short para dormir como um cego. E quando,
afinal, pôde deitar-se, fez uma reflexão melancólica: há dez meses ou mesmo um
ano que o beijo na boca fora abolidos entre os dois. O máximo que ele, intimidado,
se permitia, era roçar com os lábios a face da esposa.
No escuro tentou beijar
a mulher e foi repelido.
“Na boca, não! Não
quero!”.
Outra coisa que o amargurava
era o seguinte: a negligência da mulher no lar. Não se enfeitava, não se perfumava.
Deitado ao seu lado, ele pensava agora, lembrando-se da teoria do sogro: —
“Será que a esposa
honesta também precisa cheirar mal?”.
MUDANÇA
Um mês depois, ele
chega em casa, do trabalho, e acontece uma coisa surpreendente: a mulher,
pintada, perfumada, se atira nos seus braços. Foi uma surpresa tão violenta que
Halan perde o equilíbrio e quase cai. Em seguida, ela aperta entre as mãos o
seu rosto e o beija na boca, com tanta paixão que lembrou-lhe os bons tempos de
namorados.
Ele a segura com força
pelos braços e a encara, cheio de perguntas:
— O que aconteceu? Que
mistério é esse? Que foi que houve?
Vicencia responde com
outra pergunta:
— Não tá gostando?
Ele senta, confuso:
— Gostar, gostei,
mas... — Ri: — Você não é assim, você não me beija, nunca.
Halan tem um gesto de
uma petulância que o delicia: vem sentar-se no seu colo, encosta o rosto no
dele. Halan é acariciado. Acaba perguntando:
— Aconteceu alguma
coisa. Aconteceu?
Ela suspira:
— Mudei, ora!
SOFRIMENTO
A princípio, Halan se
perguntava: “É hoje, só”. No dia seguinte, porém, houve a mesma coisa. Ele
coçava a cabeça: “Aqui tem algo de estranho, de suspeito!”. Coincidiu que, por
essa ocasião, os seus sogros aparecessem para jantar. O sogro, enquanto a
mulher conversava com a filha, levou o genro para a janela:
“Como é? Como vai o
negócio aqui?”.
Halan exclama:
— Estou besta! Estou
com a minha cara no chão!
O velho empina a imensa
barriga:
— Por quê?
E o genro:
— Tivemos aquela
conversa. Pois bem. Vicencia mudou. Está uma flor; e me trata que só o senhor
vendo!
Ao lado, mastigando um
palito de dente, o velho balança a cabeça:
— Ótimo!
— O negócio está tão
bom, tão gostoso, que eu já começo a desconfiar!
O sogro põe as duas
mãos nos ombros do genro:
— Quer um conselho? De
mãe pra filho? Não desconfia de nada, rapaz. Te custa ser cego? Olha! O marido
não deve ser o último a saber, compreendeu? O marido não deve saber nunca!
LUA-DE-MEL
Seguindo a sugestão do
sogro, ele não quis investigar as causas da mudança da esposa. Tratou de
extrair o máximo possível da situação, tanto mais que passara a viver num
regime de lua-de-mel. Dias depois, porém, recebe um bilhete anônimo, com dados,
nomes, endereços... o anônimo começava assim: “Tua mulher e o Roberto...”. O Roberto
era, talvez, o seu maior amigo e jantava três vezes por semana ou, no mínimo,
duas, com o casal. O bilhete anônimo dava até endereço da casa onde os amantes
se encontravam. Halan ler aquilo, reler e rasga, em mil pedacinhos, o papel infame,
ordinário. Pensa no Roberto, que é solteiro, simpático, quase bonito.
Uma ficou na dúvida:
sua felicidade conjugal, no últimos dias é feita à base do Roberto. Halan continuou
sua vida, sem se dar por achado, tanto mais que Vicência revivia, agora, os
momentos áureos da lua-de-mel. Certa vez jantavam os três, quando cai o
guardanapo de Halan. Este se abaixa para apanhar e vê, debaixo da mesa, os pés
da mulher e do Roberto, colados, casados, uns por cima dos outros.
Passa-se o tempo e Halan
recebe a notícia: o Roberto ficara noivo! Vai para casa, preocupadíssimo. E,
lá, encontra a mulher de braços, na cama, aos soluços. Num desespero cego, ela
diz e repete:
— Eu quero morrer! Eu
quero morrer!
Halan olhou só: não fez
nenhum comentário. Vai numa gaveta, apanha o revólver e saí à procura do outro.
Quando o encontra, cria o dilema:
— Ou você desmancha
esse noivado ou dou-lhe um tiro na boca, seu cachorro!
No dia seguinte, o
apavorado Cunha escreve uma carta ao futuro sogro, dando o dito por não dito. À
noite, comparecia, escabreado, para jantar com o casal. E, então, à mesa, Halan
vira-se para o amigo e decide:
— Você, agora, vem
jantar aqui todas as noites!
Quando o Roberto saiu,
passada a meia-noite, Vicência atira-se nos braços do marido:
— Você é um amor!
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Contos
Nova Sessão do blog do Carlinhos
Baseado nos contos de Nelson Rodrigues
“A Vida Como Ela é”
AVISO: Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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