Crianças ou mulheres?
0
Comentários
Casal. Carlos Cantanhede,
48, e sua mulher, de 14: o casal não chama atenção em Conceição do Lago Açu,
interior do Maranhão.
Foto: Francisco Ottoni
Faz cerca de um ano que
Carlos Augusto Cantanhede prestou atenção na menina de bochechas cor de jambo e
olhos esverdeados que entrou em sua venda para comprar farinha. Ela tinha 13
anos. Ele, 47. Calejado, ex-garimpeiro curtido na lida das minas de ouro de
Roraima, havia três anos ele decidira “sossegar” na Conceição do Lago Açu
natal, tomar tino, curar a solidão. Foi quando conheceu a rechonchuda menina,
ainda na quarta série do primário e decidiu: “era ela”. A mãe dele tinha seus
13 anos quando casara com o pai, bem mais velho. Foi sem remorsos, então, que
numa tarde de sol Carlinhos deixou o cubículo ladeado por garrafas de cachaça e
sacos de víveres, caminhou 20 metros na mesma rua, entrou na sala de chão
batido de Tânia Fonseca e “pediu” sua filha. Ela suspirou aliviada. “Eu disse:
Olha, não é mais virgem e anda aprontando”, lembra Tânia. “Mas se o senhor
quiser, e ela gostar, tá feito. Eles passaram a noite. No outro dia ele veio
dizer que ela ficava.”
Em Conceição do Lago Açu,
cidade de 15 mil habitantes a 346 quilômetros de São Luís, nos rincões do
Maranhão, casar aos 16 anos é “casar tarde”, como explica Tânia, enquanto
indica as cadeiras de plástico num canto. Com a rede e a tevê de 14 polegadas,
elas completam a sala da casa de pau-a-pique rachada pela pobreza e pelo tempo,
onde ela vive com o marido e dois dos seis filhos, graças à pesca e aos 130
reais do Bolsa Família. Ela só sabe assinar o nome. “Aqui, com 12 anos menina
solteira é problema pruma mãe. Rapaz de 20 quer nada sério, só droga e bagunça.”
A filha “começou” aos 12: foi estuprada. O namorado acabou na cadeia. O segundo
batia nela. Separaram-se. Depois, ela “passou a esperar moleque na rua”. Até
que o comerciante surgiu na sua porta, chapéu de palha na mão, proposta na
ponta da língua. “Foi uma bênção. Nós somos pobres. Eu tirava a sandália do pé
pra botar no dela. E já pensava que ela ia botar filho no mundo pra nós criar.”
Quando a filha foi viver com Carlinhos, ela não estudava havia dois anos,
conta. Ele a devolveu à escola. “Errado? Quando ela andava atrás de homem na
rua, ninguém dizia nada. Agora que endireitou, se arrumou com o coroa, fazem
denúncia? Não entendo.”
Retrato do embate entre lei
e costume, entre a presença do Estado de Direito e uma cultura arcaica
enraizada na fímbria de uma gente esquecida por séculos pelo próprio país, Lago
Açu é uma dentre centenas de cidades nos rincões do Brasil a testemunhar, da
maneira mais difícil, as mudanças trazidas pelo crescimento econômico e pelo
acesso à informação. Aqui, por causa do Bolsa Família, as lojinhas pulsam na
única rua asfaltada, datada da última eleição. Entre as casas de pau-a-pique
despontam umas poucas de alvenaria. As motos substituíram os burros, extintos
como meios de transporte. Um posto de gasolina improvisado guarda a entrada da
cidade, sinal dos novos tempos. Mas as taxas de natalidade seguem altas. O
esgoto escorre negro nos cantos das ruelas, caindo no lago onde porcos, urubus
e peixes dividem espaço. Falta transporte, saúde, educação. “A vida tá melhor”,
assevera Maria do Rosário, dona do hotel Maranhão. “Mas falta emprego.” Rosário
medita, os olhos fixos na rua enlameada. “Essas meninas não têm o que fazer e
ficam na folia. Eu mesma queria pegar uma de 12 pra me ajudar. Mas pega pra
ver: dá cadeia.”
*Leia matéria completa na
Edição 706 de CartaCapital, já nas bancas







0 Comentários