A chuva e a madrugada
0
Comentários
![]() |
Lago da Pedra ontem |
Éramos
crianças e a cidade, para nós, tinha os limites da Rua de Santaninha, onde morávamos,
e da Praça Deodoro, onde um mundo lúdico nos espreitava e conduzia, para o
encontro dos amigos e de outras descobertas.
Continua...
Aquelas
chuvas permaneciam por dias e dias seguidos e semeavam nostalgia dentro e em
torno de nós. Algumas vezes, o sol não dava o ar da graça uma semana inteira, e
o cinzento das nuvens pesadas fazia o cenário da rua, das enxurradas que
corriam pelas sarjetas, pelas tardes úmidas, muito além das seis horas da
tarde, quando as rádios tocavam a Ave Maria e já tínhamos que estar banhados,
vestidos com roupas limpas, esperando o jantar.
Outras
vezes, passávamos dois, três dias sem sair à rua, sem ir ao colégio, cingidos
pelo cinzento das horas que escorriam com as águas e que nos comprimiam em
casa, entre crenças, simpatias, rezas e tudo o mais que refletia nossa
reverência a Deus e seus desígnios: espelhos cobertos com lençóis; café quente
para cima dos telhados, imprecando Santa Clara. Era um mundo de crendices que
minha mãe, que meu avô, que meu pai traziam e punham em nossa casa, dentro de
nós!
Éramos
crianças, sim. Os sons das trovoadas vinham, amedrontantes, e nos impeliam para
debaixo da mesa, para dentro de nós mesmos, com temor e reverência, e nos
aproximavam de Deus. As faces de Deus, estampadas nos santinhos que os padres
nos entregavam, tinham o mesmo doce semblante de agora, que inspirava o amor e
o temor, ao mesmo tempo. Era a ele que pedíamos, buscando alívio para nossos
temores temporais. Era a ele que temíamos, que não podíamos desagradar
cometendo pecados.
Mas
o som das chuvas, das águas contra o telhado e as folhagens, contra as águas
das sarjetas, esse som era bem vindo, e vinha com essa aura de ansiada melodia.
Portanto,
o som das águas das sarjetas, correndo velozes para as bocas-de-lobo, para
encontrar o mar, está ligado também aos encantos da chuva, com suas tardes de
estio, e nossas mãos de crianças soltando barquinhos de papel, que iam
encontrar seu destino, bem longe de nós, de nossos sonhos e promessas,
infantis. Está ligado ao turbilhão, ao murmúrio que as aquelas águas apressadas
faziam, como se cantassem correndo, alegres em busca de seus destinos.
O
som das chuvas no telhado, porém, tinha o dom especial de nos adormecer, de nos
embalar as histórias de carochinhas, de nos aliviar o medo das madrugadas. Era
como se fosse uma proteção, um vigia que nos guardasse, juntando-se a Santo
Antônio que imperava, majestoso, no pequeno oratório de nossa casa.
Só
quem já dormiu, embalado pelo som de chuva forte, sobre as telhas de barro,
numa casa sem forro, sabe bem o que estou dizendo. E como estou dizendo, posso
acrescentar ao som das chuvas o prazer de estar deitado, metido numa rede de
algodão, feita em São Bento, com varandas largas, para a magia de dormir.
E
nessa magia, estar metido num pijama meio velho, meio surrado, nem muito sujo,
nem muito limpo também. Um pijama já usado, com cheiro de roupa dormida, para
mais se parecer com nós mesmos.
Só
mais tarde, já no início da adolescência, vim conhecer um outro som,
relacionado com as águas das chuvas, que viria a me encantar inteiramente a
alma, me embalando como melodia perfeita, quase como um sonho. Foi em nossa
fazenda Santo Antônio, na Ponta da Ilha. Era o som da chuva forte, sobre a
palha da casa do vaqueiro, onde tantas vezes dormi, com o consentimento zeloso
de meu pai e minha mãe.
Esse
som era algo essencialmente puro, em sua forma, em sua sonoridade, na maneira
com que se projetava sobre o telhado, sobre nossas cabeças e nos embalava o
sono.
Era
uma outra forma de melodia. Eu ficava, ali, inteiramente entregue à casualidade
do momento, querendo usufruir tudo, gozar de tudo, inclusive da luz da
lamparina, que ardia acesa na noite, realçando cada objeto, cada coisa que
tinha nome e ganhava vida, naquela casa. Ela se impunha sobre a escuridão,
sobre as muriçocas e com ela adormecíamos, cansados das travessuras do dia.
O
som das chuvas sobre a casa do vaqueiro foi, com certeza, o som mais puro que
eu gravei, nos quadros de minha infância. Sim, porque na casa de seu Ludgero,
desde a porta de palha trançada, tudo era simples, funcional e tinha uma
existência quase humana, porque era feito pelos que ali habitavam: o mocho, o
fogão e o pote de barro, as bilhas d' água, as moringas, a mesa, o jirau, a casa
inteira, com sua cobertura e suas paredes vegetais. E o som da chuva, nas
palhas, tinha essa mesma aura de eternidade.
O
tempo consolidou em mim uma história das chuvas e seus sons, suas melodias que,
para uns, era tormento e dor. Por isso, agora, posso sentir que a chuva que cai
sobre a cidade, que encharca a terra e enche de vigor o verde vegetal das
matas, das plantas, é como se caísse em mim também, me enchendo de verde, de
lembranças, de águas que rolam, limpam, fertilizam e fazem brotar frutos mais
doces e maduros. Amar a cidade é viver sua poesia e suas lembranças. É preciso
amar a cidade.
Ivan Sarney
0 Comentários